Maricón! Maricón!
Voltemos à estrada. Quando decidiu que iria mesmo, Arnaldo pediu ajuda ao amigo Eduardo, que andava de moto há mais tempo, para escolher um modelo. Na oficina de seu Chico, mecânico do bairro, ficaram sabendo que as motos que tinham no Brasil não eram boas o suficiente para chegar aos “States”, e que o ideal para a road trip seria uma BMW. Decepcionados, quase desistiram da ideia. Mas, poucas semanas depois, por umas dessas coincidências da vida, dois irmãos entraram na oficina de seu Chico. Eduardo conta o que aconteceu: “Os caras queriam vender duas BMWs iguais. Foi tão inacreditável que achei que era um sinal e decidi ir junto. Arnaldo comprou uma, eu comprei a outra. A minha era 1952, e a dele 1951. Eram BMW R50 de 500 cilindradas. Pagamos 2.500 e 2.400 do dinheiro da época. Tive que vender minha Harley-Davidson 52. Mas sobraram US$ 1 mil, que levei comigo”.
No dia 4 de fevereiro de 1970, com a máquina de Eduardo vazando óleo e nenhuma revisão, os amigos pegaram a estrada. “Tinha certeza de que chegaria no máximo até Curitiba, eu era diferente do Arnaldo. Não era aventureiro, e ele era do tipo que vivia com a mão cheia de graxa, de tanto mexer no jipe e na sua primeira motinho, uma Matchless 500 de apenas 1 cilindro”, confessa. “Eu tinha acabado de assistir a Easy Rider, queria ser igual aos motociclistas, com aquele vento no rosto”, manda Arnaldo. Eduardo, então estudante de engenharia, chegou até o Canadá, depois de quase três meses de viagem. Arnaldo abandonou o barco, ou melhor, o asfalto, um tanto antes, no Panamá.
Como a banda já fazia muito sucesso, Arnaldo foi bastante assediado enquanto rodava dentro do Brasil. A mudança veio quando saímos do país. “Ninguém me reconhecia, eu era livre. Deixei a barba crescer quando me mandei, porque a Rita não gostava de barba, e eu tinha medo dela. Lembro até hoje das paisagens maravilhosas dos Andes, com neve de um lado e mar do outro. Lembro de deitar no chão de terra para ver as estrelas quando parávamos para descansar na estrada, em sacos de dormir. Lembro que o sol era tão forte durante o dia que eu colocava o alumínio do papel de cigarro colado no nariz, para evitar queimaduras. Me recordo de ter achado as pessoas do Equador uma maravilha, muito internacionais”, enumera o Lóki.
A viagem seguiu com inúmeras paradas para reparar as motocicletas. Os amigos contam que Arnaldo, líder nato, sempre andava na frente e era também o responsável por desvendar os problemas mecânicos das BMWs. Quando chegaram ao Peru, uma das máquinas quebrou, e Arnaldo arrumou emprego em uma oficina para poder consertar a moto. “Ele era destemido, corria atrás de caminhões que o fechavam no deserto do Atacama e gritava: ‘Maricón! Maricón!’. Ele sempre teve um ouvido inacreditável. Percebia que havia um problema nas peças só pelo ronco da motocicleta”, lembra o companheiro. “No Peru trabalhei nessa oficina e arrumei a moto de muita gente. Tive que pedir dinheiro para minha mãe para comprar uma peça, mas no fim deu tudo certo. Problema mesmo foi a lhama do hotel que cuspia o tempo todo na minha cara. Ela recebia uma mamadeira com leite e cuspia de volta. Uma graça”, diverte-se Arnaldo.
Drogas na privada
As histórias são inúmeras. Entre uma e outra, o olhar de Arnaldo se perdia, como se estivesse aos poucos calibrando a memória. E, num rompante, gargalhava e balançava as mãos ao divertir-se com algumas lembranças com riqueza de detalhes. “O cérebro é a máquina mais perfeita que existe. Você lembra das baratas voadoras do Equador? E em Porto Bolívar, que tivemos que pegar um barco e dormir com porcos e galinhas? Lembra?” Eduardo confirma. “E você lembra por que teve que voltar ao Brasil?”, retruca. Arnaldo faz que não, com um sorriso amarelo no rosto. “Acho que tive que gravar com os Mutantes, não foi?” Mais ou menos.